Elizabeth Van Brunitte

No coma de seus delírios, ela estuprava a tela com fortes pinceladas. Conflagrava o até então virgem tecido branco com cores e sobre cores quentes e o tingia com as túrgidas e coaguladas bolhas de tinta que dormiam pútridas sobre a paleta.

Em sua cabeça, irrequietas notas musicais cantarolavam o som da morte em uma ira fulminante e inspiradora.

A cada toque do pincel, ela enxergava uma face, um rosto que a observava e gritava em alto e bom som para que ouvisse "Me tire daqui! Me liberte dessa fé maldita! Deus desgraçado! Me salve desse inferno celeste!".

Em desespero, medo e agonia, a jovem derramava a tinta, violentava o quadro.

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Elizabeth era uma jovem moça nascida em Flandres, na região norte da Bélgica.

Aos nove anos, perdera sua mãe, que falecera juntamente com seu irmão durante um parto prematuro. Foi criada por seu pai, Ramazan, que lhe deu muito amor durante toda a vida.

Ramazan era um velho artista não renomado e que vivia da venda de esculturas e de alguns quadros. Geralmente as obras eram feitas por encomenda pela Igreja Católica.

Em 1645, dois anos após a morte de sua mãe e de seu irmão, Elizabeth encontrou uma forma de fugir da depressão. Aos 11 anos de idade, descobriu dentro de si mesma a incredibilidade na fé cristã e a paz que sentia com a presença daquela deusa de olhos negros.

Foi em uma tarde Domingo que apareceu na oficina do pai uma mulher de cabelos e olhos pretos como o tronco de um ébano, a pele branca e os lábios rosados. Usava um vestido vermelho e os pés descalços. Aparentava ter uns vinte e poucos anos e era de uma beleza cativante.

A jovem entrou sem nada dizer e sentou-se no chão com o braço esquerdo servindo de apoio, a postura ereta e a cabeça levemente inclinada para trás. Eliza instintivamente pegou a paleta do pai que repousava sobre a mesa e, com os dedos, começou a rabiscar suavemente uma pequena tela que havia ali mesmo.

A musa nem se movia. Seu corpo permaneceu ali, estático, por cerca de uma hora.

Ramazan estava extremamente concentrado no término de uma imagem de Nossa Senhora que esculpia em ançã, nem percebendo o que a filha estava a fazer. Quando resolveu dar uma pausa, voltou-se para ela e, boquiaberto, deixou cair no chão a espátula que segurava. Ao se deparar com aquele quadro, seus olhos se encheram de lágrimas. O rosto do homem ficou pálido, a boca secou. Ramazan ficou pasmo ao ver a belíssima pintura que ela fizera, ainda que nunca tivesse sequer encostado em um pote de tinta. Emocionado, ele abraçou a filha e chorou com o retrato de sua falecida esposa com uma criança no colo que acabara de ser pintado ali.

Quando se deu conta do que acabara de fazer, a garota desvencilhou seu corpo do afável abraço do pai e saiu correndo até seu quarto, onde desabou em vil pranto.

A partir desse dia, muitos se seguiram da mesma maneira. A mulher, que nunca se identificava ou dizia qualquer coisa, aparecia todos os Domingos no atelier pela manhã e fazia alguma pose. Elizabeth pincelava no quadro cada traço de seu semblante e ao final se deparava com uma paisagem, um santo, um anjo, uma bela árvore... Mas nunca com o retrato de sua musa. A menina já não ia mais às missas como de costume, pois seu tempo era muito mais bem aproveitado com aquilo.

Ramazan se preocupava com esse afastamento da Igreja e com a estranha situação na qual, sempre que chegava da igreja, se deparava com Elizabeth olhando para a parede e pintando veemente algo que parecia enxergar ali, como se fosse sua inspiração. Mas achou melhor não privar a menina de fazer a única coisa que agora lhe dava razões para viver.

Com a intensa produção de quadros da filha, a grande demanda de compra de telas e tintas e o momento financeiro difícil pelo qual estavam passando, Ramazan tem a ideia de começar a vender os quadros da filha, caso ela concordasse. Como o mercado não aceitava qualquer espécie de produção artística feminina, ele assinaria suas obras e assim poderiam melhorar sua situação de vida.

Eliza aceita, sentindo-se muito feliz por poder ajudar o pai que tanto amava.

Certo dia, a menina resolveu perguntar à moça qual era seu nome, mas ela nada respondeu. Não insistindo na pergunta, as duas continuaram desta forma por muito tempo, resumindo-se a cinco anos.

Neste tempo, Elizabeth pintara bastantes quadros. Quando não o fazia, apenas passava bons momentos observando a mulher, que era de uma beleza inenarrável e nada mudava apesar de os anos.

Ramazan já tentara diversas vezes conversar com a filha sobre o que estava acontecendo, mas a menina não entendia o que tinha de errado com aquilo, principalmente porque não sabia que era a única que conseguia enxergar a mulher.

O tempo passava... Elizabeth fazia quadros e mais quadros... Já tinha 16 anos, conhecia seu corpo e começava a conhecer sua mente. Sentia algo muito singular, algo que, nos poemas que lia, era definido como paixão. A garota sentia-se muito triste quando sua musa inspiradora não aparecia e por vezes sonhava com seus olhos, sua boca, seu decotado vestido vermelho, seus cabelos... Tinha uma enorme necessidade de abraçar aquela mulher, beijá-la, sentir seu corpo junto ao seu, mesmo sem ter jamais feito algo assim - pelo menos não no mundo fora dos sonhos.

Certo dia, Ramazan chega do centro de Flandres e diz à filha:

- Eliza, consegui uma encomenda que vai ser de grande lucro para nós! Vou fazer uma escultura de oito metros do soldado Brabo para ser colocada no centro da Grote Markt! Devo começá-la mês que vem, e até lá preciso de fazer uma imagem de Santo Amândio para a catedral. Se for possível, faça alguns quadros para lá, tudo bem?

- Claro, pai! E fico muito feliz que tenha recebido uma encomenda dessas.

O homem saiu mais uma vez da oficina para comprar alguns materiais, e na mesma hora a moça entrou pela porta. Os olhos de Eliza até brilharam, pois, além da saudade, ela tivera um maravilhoso sonho com sua musa na noite passada - um sonho que lhe deixara com a roupa íntima levemente umedecida e fizera seu coração bater aceleradamente.

A jovem e bela moça faz diferente desta vez. Não chega de modo silencioso e prepara-se para ser pintada. Ela se aproxima da garota, ajeita seu cabelo liso atrás da orelha e diz, com o rosto próximo ao dela:

- Meu nome é Nyzette, meu bem.

Dito isso, ela se aproxima mais e encosta seus lábios nos de Elizabeth, que fica pasma. Seu coração bate ainda mais forte, e ela fica completamente sem reação.

Nyzette se afasta e se deita no chão frio do local, no mesmo lugar de sempre. A menina pega seu pincel e faz seu trabalho, desta vez com ainda mais vontade do que nunca. Pincela com força cada traço de seu rosto, cada curva de seu corpo. Em sua mente, ouve muitas notas musicais em um som caloroso e pesado, ao mesmo tempo que aprazível e cativante. A mulher a observa com um olhar sedutor, o que a deixa excitada e instigada a pintar cada vez mais.

Elizabeth não faz apenas um quadro; ela termina e começa outro, termina e começa outro, termina e começa outro. Em pouco tempo, já havia feito seis quadros distintos, já sabendo que algum deles seria de Santo Amândio, mesmo que sem a intenção.

Quando termina o último, ela vai na direção de sua musa. Chega até ela, abaixa-se e fecha os olhos para dar-lhe um beijo. Nesse instante, Ramazan chega e vê a filha ali. Pensando que estava chorando, ele se aproxima e ela então abre os olhos. Nota que não havia ninguém lá mais - Nyzette havia desaparecido. Muito triste e desapontada, a menina mais uma vez sai correndo. Vai para o seu quarto e imagina a mulher em sua cama, sem aquele vestido vermelho, com seus belos seios à mostra e suas curvas perfeitas. Elizabeth toca seu corpo, acaricia suas partes com a ponta dos dedos e ali satisfaz o desejo que tem há anos com essa mulher. Na verdade não o satisfaz, apenas o alimenta.

No atelier, Ramazan se impressiona com os seis novos quadros que a filha havia feito. Todos retratavam uma mulher muito bela, de pele branca, cabelos longos e pretos e olhos sedutores. Usava um belo vestido vermelho e, em cada quadro, fazia uma nova e linda pose. Acha estranho que a mulher se encontrava no mesmo lugar em todos os quadros, e era exatamente onde a menina estava quando ele chegara. Um certo medo de repente vem ao coração do homem, pois ele nota o quão real e penetrante era o olhar da moça pintada, olhar este que o deixa com uma agonia muito grande. Ramazan sai de lá.

No dia seguinte, Eliza foi até o atelier e viu suas obras. Se assustou, pois nunca havia conseguido fazer um retrato de Nyzette, e ali, com todos aqueles quadros, sentiu-se um pouco atormentada, ao mesmo tempo que alucinada com o que havia feito. Naquele momento, a mulher apareceu em meio às muitas pinturas que lotavam aquele atelier. Eram cerca de 28 por todo o lugar, sendo apenas aqueles seis da musa. Mas, quando ela entrou, todos as outras foram se transformando naquilo que a menina tinha a intenção de pintar. Eram variadas poses da bela mulher com os mais distintos semblantes, nunca abandonando aquele olhar persuasivo e manipulador.

A jovem foi entrando naquela oficina com passos lentos e silenciosos. Usava aquele mesmo vestido vermelho e seus pés, mesmo que nus, estavam brancos como toda a sua pele.

Elizabeth ficou ali, parada. Estava sendo observada por todos os lados pela sedutora mulher, que se aproximava cada vez mais. Esse situação não deixou a menina com medo, mas sim, com desejo e uma vontade insana de tirar a roupa, assim como a de Nyzette. E assim ela fez.

Ao chegar até a garota, a mulher passou a mão por seus cabelos, suas bocas se encostaram e um caloroso beijo foi fluindo. As línguas se entrelaçavam e as mãos de ambas corriam por cada parte do corpo da outra, enquanto uma melodia como as de Sebastian Bach ecoava por todo o atelier, vindo sabe-se lá de onde.

Ao mesmo tempo que se atracavam, iam desvencilhando suas roupas dos corpos até estarem completamente nuas. Nenhuma de suas partes ficava omitida ou deixada de lado. As línguas iam de um lábio ao outro, os dedos tocavam cada pedaço, imergiam-se aonde fosse mais prazeroso e assim, naquele frio chão, elas se amaram com um desejo carnal de tirar o fôlego.

Aquele momento poderia durar para sempre, mas não foi assim. Mais uma vez, o pai de Eliza apareceu na porta do atelier e viu aquela cena deplorável e constrangedora da filha nua, com as partes de seu corpo completamente expostas e se cortando com uma de suas afiadas espátulas. O chão todo sujo de sangue; os braços, a barriga, as pernas... Tudo repleto de machucados. A menina de repente acorda para si e percebe que Nyzette não estava mais lá. Todo aquele prazer que ela sentia se transforma em dor, seus olhos começam a arder como que fulminassem em chamas e sua respiração fica mais ofegante do que nunca.

Ramazan fica sem saber o que fazer, constrangido. Criar uma filha já não era uma tarefa muito fácil, devido a muitas coisas que somente uma mãe saberia como ensinar. Vê-la daquele jeito estava sendo, sem dúvidas, a cena mais difícil de sua vida.

Com uma vergonha imensurável, a menina tentou se levantar e cobrir suas partes íntimas com as roupas que ali perto estavam, mas de repente sentiu algo muito pesado puxar-lhe a alma. Um ódio avassalador foi corroendo seu coração e tirando dele toda e qualquer bondade que pudesse existir ali. As pinturas da mulher pareciam se mexer, de modo que ela se levantava do chão em cada tela e gritava com a menina. O que antes era uma bela melodia, agora se transformara em um som pesado e destruidor. O sangue fluía cada vez mais e escorria por sua pele pálida, que, sentia, parecia estar apodrecendo. Fora de si, a menina se levantou e atacou o pai com aquela mesma espátula. Rapidamente, a cravou no coração do homem, que caiu no chão enquanto cospia bolhas de sangue. Enquanto ele agonizava de dor, Elizabeth espetava seu corpo com mais e mais fincadas do objeto, fazendo com que o homem padecesse ali mesmo.

Após assassinar o pai, ela volta a si e seu coração se aperta. Era simplesmente inenarrável o sentimento que afligia a garota. A dor que corroía sua mente era muito maior que qualquer coisa mensurável neste mundo. E assim, com os olhos cheios de lágrimas - lágrimas estas que se misturavam com o sangue que manchava seu rosto - Elizabeth tentou se matar, buscando nisso a única saída para seu sentimento de dor, tristeza, agonia, remorso, penitência, medo e tormenta. Com aquela mesma espátula com a qual acabara de tirar a vida de seu pai, ela tentou tirar a própria. Porém, quando ia fincá-la em seu corpo, uma força maior segurou sua mão, o que a deixou ainda pior por nada poder fazer.

Naquele instante, então, ela se ergue novamente, vai até aquele canto no qual produzia suas obras e pega o pincel. No coma de seus delírios, ela estupra a tela com fortes pinceladas. Conflagra o até então virgem tecido branco com cores e sobre cores quentes e o tinge com as túrgidas e coaguladas bolhas de tinta que dormiam pútridas sobre a paleta.

Em sua cabeça, irrequietas notas musicais cantarolavam o som da morte em uma ira fulminante e inspiradora.

A cada toque do pincel, ela enxergava uma face, um rosto que a observava e gritava em alto e bom som para que ouvisse "Me tire daqui! Me liberte dessa fé maldita! Deus desgraçado! Me salve desse inferno celeste!".

Em desespero, medo e agonia, a jovem derramava a tinta, violentava o quadro.

Terminado, ela caiu no chão com os olhos bem abertos e saiu de seu âmago tudo de ruim que lhe afligia. Eliza sentiu uma enorme paz dentro de si, e assim perdeu a consciência.

Acordou sentindo-se com o corpo pesado, as mãos extremamente doloridas, tal como seus pés. Ao abrir os olhos, viu uma multidão que a observava. Olhou para baixo e notou que estava presa a uma cruz bem no meio da Grote Markt, que é uma das principais praças da Bélgica. Usava uma túnica branca e muito suja de sangue. Abaixo desta cruz, repousavam muitos pedaços de madeira e diversos quadros, todos os feitos por ela que continham a imagem de Nyzette. Um medo avassalador tomou seu coração, mas ela não teve muito tempo para senti-lo, pois naquele momento, veio um homem encapuzado com uma tocha e ateou fogo aos objetos que ali estavam. As chamas se alastraram rapidamente, subindo pela grande cruz que a sustentava e queimando sua pele clara.

E assim morreu Elizabeth Van Brunitte, em uma sexta-feira do mês de Abril, no mesmo dia em que Jesus Cristo, assim como dizem os cristãos, havia sido executado. Acusada por assassinato e ligação com a bruxaria, Elizabeth possuía em seu atelier diversos quadros de Nyzette Cheveron, uma mulher que, sob tortura, confessou ser uma bruxa, foi estrangulada e queimada até a morte no ano de 1605, na Bélgica. Assim como ela, morre, no ano de 1650, mais uma moça nas mãos da Santa Inquisição.

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